A lógica neoliberal da produtividade nos faz sentir culpa pelo lazer e a arte — mas precisamos resgatar nossa essência e nos conectar com o intangível
Nos últimos dias, me peguei pensando muito nesse trecho dos Titãs que inseri como título do artigo.
De repente eu, que sempre me declarei como uma alma sonhadora, idealista e sensível, em busca de apreciar a beleza das pequenas coisas, vi minha essência sendo cooptada por um discurso neoliberal que coloca o individualismo e o utilitarismo produtivista como propósitos de vida.
No início do ano eu fiz uma lista de livros que gostaria de ler — todos de não-ficção, com ênfase em espiritualidade e crescimento interior. Em um momento da vida em que tento redescobrir quem eu sou e o meu lugar neste mundo, reconheço que todos esses livros trazem sim grandes ensinamentos e reflexões. No entanto, de alguma forma me vi presa em uma busca incessante por encontrar utilidade em tudo.
Na sexta-feira da semana passada, pouco antes de dormir, decidi que gostaria de ler algum livro novo. Nesse momento, me vi relutante em fazer algo que sempre gostei muito: ler uma obra de fantasia. Pode parecer um questionamento trivial, mas o simples ato de pensar que usaria meu tempo lendo algo que não me acrescentaria conhecimentos ou reflexões me causou uma certa angústia. Era como se simplesmente a leitura como uma forma de lazer fosse uma perda de tempo.
Ignorei essa voz interna, de autojulgamento, e decidi seguir com o livro, lembrando-me de que a leitura deve ser uma experiência livre e subjetiva, sem que precise me ensinar ou trazer algo em retorno. Temos nossas mentes impregnadas pela ideia neoliberal de que tudo precisa ter um propósito produtivo, inclusive o lazer, e nos esquecemos de viver por viver, sentir por sentir.
Ao averiguarmos as listas dos livros mais vendidos, boa parte deles são títulos de autoajuda. Eles prometem sucesso, produtividade e desenvolvimento pessoal — mas sempre focando no eu, reforçando um olhar individualista que ignora o coletivo e a vida em sociedade. Além disso, nos distanciam de praticar a leitura como uma forma de acessar a essência criativa que reside em nós — aquela chama interior que anseia por expressão e acolhimento, mas que só consegue se manifestar por meio da arte.
E a arte nesse contexto surge como resistência. Crua em sua aparente insignificância, mas abundante em possibilidades, ela não precisa justificar sua existência. É a arte pela arte, subjetiva e interpretada por cada um à sua maneira. E, nesse processo de adentrá-la, permitimos que transborde aqui de dentro a capacidade de sentir, imaginar e nos conectar com o que há de mais humano em nós: o amor, a criatividade, a emoção, o desejo de dar forma ao invisível.
Uma das minhas frases favoritas do filme Sociedade dos Poetas Mortos explora um pouco essa ideia, nos lembrando que a arte é intrínseca a nós:
“Não lemos e escrevemos poesia porque é bonitinho. Lemos e escrevemos poesia porque somos membros da raça humana. E a raça humana é cheia de paixão. Medicina, direito, administração, engenharia são atividades nobres. Mas a poesia, a beleza, o romance, o amor, são as coisas pelas quais vale a pena viver”.
Eu anseio por viver, mais do que apenas existir. Isso implica reconhecer a importância do que não é palpável, nem tampouco mensurável. O que não podemos tocar ou medir é muitas vezes o que realmente nos define como seres humanos, com nossas inúmeras complexidades, nuances, sonhos, ideias e sentimentos.
Antes de ontem, rolando pelo feed do Instagram, o algoritmo me trouxe uma publicação apresentando o escritor indígena Ailton Krenak, que publicou um livro com um título para lá de provocativo: “A Vida Não é Útil”. Embora, por hora, eu tenha apenas colocado a obra na minha lista de próximas leituras — e somente depois que terminar a fantasia que me propus a ler e que gerou todos esses questionamentos aqui apresentados — , a publicação me instigou a pesquisar mais sobre essa visão utilitarista de vida imposta pelo neoliberalismo. Abaixo, trago alguns trechos que me chamaram a atenção::
“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. (…) Os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam — é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário. Escapar dessa captura, experimentar uma resistência que não se rendeu, cria um lugar de silêncio interior”.
Esses questionamentos levantados pelo escritor da obra me fizeram refletir que a angústia que eu senti ao decidir ler ficção é parte de um problema muito mais complexo do que apenas a simples busca por produtividade. É algo sistêmico, enraizado em uma lógica que valoriza o ser humano apenas pelo que ele produz e pelo retorno que isso trará. Assim, cada vez mais, deixamos de nos conectar com o que há de mais humano em nós, nos aprisionando em uma necessidade de justificar cada instante no lugar de apenas vivê-lo, sem nos prendermos ao que foi e ao que será.
Espero me permitir, cada vez mais, fazer as coisas simplesmente porque gosto, e não porque preciso. Escrever como forma de expressão e não apenas como parte do meu trabalho diário como jornalista. Fotografar para capturar o mundo ao meu redor sob minha própria perspectiva. Ler fantasia e ficção, ouvir música, ir a um show, ao cinema, encontrar meus amigos e me divertir — ou simplesmente não fazer nada — sem culpa e sem busca por justificativas, apenas entendendo que essas ações fazem parte da minha experiência como humana.
Que minha essência criativa nunca se perca e que as coisas subjetivas e intangíveis, como meus sonhos e sentimentos, me guiem na busca por uma vida vivida em sua plenitude — onde as pequenas coisas e os momentos de pausa tenham valor por si só e onde eu encontre a verdadeira alegria no simples prazer de amar, sentir, imaginar e sonhar.